Reformas educacionais ocorridas no Brasil
  • Apolônio Abadio do Carmo
 
  • O objetivo deste texto é primeiramente apresentar al­gumas reformas educacionais ocorridas no Brasil ao longo dos últimos cem anos, com ênfase na Reforma Benjamin Constant, que tratou especificamente da seriação escolar. Em seguida, discutiremos as implicações advindas da se­riação escolar, contrapondo-as com outras perspectivas da organização escolar. Neste texto descentramos o eixo da discussão do plano meramente didático–metodológico da organização escolar, deslocando-o para o estrutural. Com isso não estamos que­rendo dizer que as questões pedagógicas presentes nas esco­las não sejam importantes, pelo contrário, devem ser consi­deradas, porém como secundárias, e não determinantes de problemas como evasão, repetência, reprovação e qualidade do ensino. Toda mudança estrutural da forma de organi­zação escolar necessariamente exige mudanças didático­-pedagógicas. Dividimos este trabalho em dois momentos distintos, porém interligados pelo eixo central dos mecanismos ex­cludentes presentes nas relações sociais. A lógica interna do texto considera a exclusão social e escolar como partes de uma mesma relação, embora tenham sido comumente es­tudadas separadamente, ou, na melhor das hipóteses, com ênfase nos excluídos, desconsiderando-se a exclusão histo­ricamente determinada.
 
  • BREVE HISTÓRICO DAS REFORMAS EDUCACIONAIS BRASILEIRAS
 
  • Os períodos colonial, imperial e primeira república po­dem ser caracterizados como épocas de grandes mudanças sociais no Brasil, tendo em vista não somente as modifi­cações econômicas e políticas ocorridas, como também as várias reformas educacionais empreendidas, e que se refleti­ram diretamente nas políticas públicas educacionais.
  • Iniciamos nossa viagem histórica destacando a Ordem dos Jesuítas de Loiola; a Reforma Pombalina; as Aulas Ré­gias e a Lei de 15 de novembro de 1827, que criou as escolas primárias, o ensino mútuo e os exames parcelados. Houve ainda a reforma Leôncio de Carvalho, que estabeleceu a li­berdade de crença, tornou livre a frequência e restabeleceu as aulas avulsas e os exames preparatórios para o ensino superior.
  • Como nosso objetivo neste estudo é apresentar e dis­cutir os problemas da seriação escolar brasileira, não nos deteremos nas discussões e/ou resgates históricos detalha­dos acerca dessas reformas, principalmente porque já foram objeto de estudos de outros pesquisadores (CORREIA, 1997; GUIRALDELLI, 1994; MATOS, 1985; ROMANELLI, 1993).
  • Tomaremos como ponto de partida para as discussões e análises, mesmo que de forma breve, a Reforma Benjamin Constant, de 1890, que seguramente foi a que pela primeira vez deu diretrizes ao ensino brasileiro em todos os níveis e graus. O direcionamento dos diferentes níveis de ensino nela presente, de base positivista, além de introduzir a pos­sibilidade da existência de dois currículos, um de cunho humanista e outro voltado para o estudo da ciência, do pro­gresso e da técnica, deu aos conteúdos uma formatação es­pecial. Sua proposta curricular obedecia fielmente à classi­ficação de Augusto Comte1 das ciências naturais, chegando ao ponto de ordenar com precisão os conteúdos que deve­riam ser ensinados. Foi também essa a Reforma responsável pela obrigatoriedade da seriação escolar, cujo objetivo, nes­sa época, era organizar, sequenciar e dar ao ensino bases e direcionamento, tendo como referencial os princípios con­tidos na máxima positivista da “ordem e progresso”.
 
  • Enfim, a partir da Reforma Benjamin Constant, al­gumas tentativas de ensino anteriores foram revogadas, fato este que deu ao ensino brasileiro uma organicidade contras­tante com o esfacelamento existente até então. Entretanto, os exames preparatórios que possibilitavam ao aluno ingressar no ensino superior sem frequentar a escola continuaram a existir. Somente em 1901, com a Reforma Epitácio Pessoa, a proposta de Constant conseguiu concretizar-se plenamente, com a extinção dos exames preparatórios e a obrigatorieda­de da matrícula por disciplina.
 
  • Em 1911, a Reforma Rivadavia, ou Lei Orgânica do En­sino Superior e Fundamental da República, criou os Parce­lados2 e o vestibular, para o ingresso no ensino superior. En­tretanto, para o aluno se inscrever no vestibular nenhuma comprovação de escolaridade anterior era exigida. Com isto o poder público deu mostras de seu total descompromisso com a educação, favorecendo, com a falta de fiscalização e acompanhamento dos alunos, o sistema privado de ensino.
  • Tal situação foi corrigida pela Reforma Maximiliano, em 1915. Essa nova Reforma deu ao ensino brasileiro uma organicidade comparável aos modelos europeus, restabele­cendo os exames oficiais para as instituições particulares e impedindo a realização de provas que não constassem do currículo e da série escolar.
 
  • Ao longo dos anos, várias outras Reformas foram realizadas, na tentativa de se resolverem os “velhos” novos problemas da Educação brasileira, quais sejam: o acesso e a permanência dos alunos nas escolas. Podemos afirmar que a partir da década de 30, época em que o país sofreu profundas modificações sócio-políti­co-econômicas, é que se teve propostas educacionais mais consistentes e abrangentes. Merecem destaque as propos­tas Escolanovista, de Francisco Campos, e o Manifesto dos Pioneiros da Educação, liderado por Fernando de Azevedo, bem como os movimentos de alfabetização organizados e dirigidos por sindicatos e movimentos populares.
  • Nessa época, final dos anos 20 e início dos 30, o Bra­sil saía de um modelo agro-exportador e caminhava rumo a um modelo urbano industrial. Essa mudança no modelo econômico contribuiu para exigir da Escola novos compro­missos sociais. Se até então ela atendia, preferencialmente, uma camada social (elite) tendo como objetivo formar e preparar dirigentes sociais, com a mudança ocorrida novas exigências apareceram, tendo como polos de pressão, de um lado a escassez de mão de obra capacitada para assumir car­gos e empregos nas indústrias emergentes, de outro o enor­me contingente de iletrados que haviam migrado do campo para as cidades em busca de melhores condições de vida.
  • A Educação, nesse início de século, vivia o conflito de três tendências em luta pela hegemonia educacional. A ten­dência tradicional, apoiada pela oligarquia dirigente e a Igre­ja; a Escola Nova, defendida pela burguesia em ascensão; e a tendência Libertária, presente nos movimentos populares. Destacamos nessa primeira metade de século a Reforma Capanema que cronologicamente foi a última antes da vigên­cia da Lei no 4.024, de Diretrizes e Bases da Educação Nacio­nal (BRASIL, 1961). A Reforma Capanema ordenou o ensino em primário e secundário e apresentou dois caminhos para os estudantes secundários. Um voltado para a Universidade e outro, para o ensino profissionalizante. Como não podia dei­xar de ser, coube aos alunos pertencentes às camadas mais pobres da sociedade o ensino profissionalizante.
 
  • A partir da Lei no 4.024 (BRASIL, 1961), a estrutura educacional brasileira foi ordenada da pré-escola ao ensino superior. Porém, essa Lei não fixou nenhuma grade curri­cular,possibilitando, com isso, que os educadores pudessem anexar novas disciplinas à grade curricular, de acordo com a especificidade de cada região.
  • Como podemos perceber, desde seu aparecimento até os dias atuais, a seriação escolar, em que pese todo o discurso de organicidade e justiça social existente a seu favor, não conse­guiu resolver os problemas das desigualdades concretas exis­tentes entre os alunos, pois, em última análise, ela representa um importante mecanismo social e educacional de exclusão.
  • Por mais que a organização escolar seriada tenha ten­tado, em nome da justiça e igualdade social, garantir a se­quenciação dos conteúdos e das séries e, por extensão, a hierarquia e seleção dos alunos, os conflitos advindos desse ideário têm contribuído para o esfacelamento e decadência do processo educacional brasileiro. Basta olhar e seguir o eixo histórico dos problemas educacionais, que se terão as mais claras respostas.
  • Os diferentes estudos e pesquisas realizados e que tra­tam de questões internas e externas à escola permitem afir­mar que a estrutura e a forma de organização escolar devem ser o centro de todo o processo de mudança, pois, se por um lado, em nível de discurso, a seriação escolar demons­tra uma lógica de organização e justiça social, por outro, na prática do cotidiano escolar, tem possibilitado que se come­tam as maiores injustiças com os educandos.
 
  • Por exemplo: seus seguidores denominam de “classe” o conjunto de pessoas com capacidades e habilidades total­mente diferentes. A classe aparece como o local onde se re­únem os iguais e os diferentes, simultaneamente. E os pro­fessores continuam atuando nessa mesma classe, fazendo o discurso da igualdade e a prática da diferença, contradição que se aguça ainda mais nos vários elementos constitutivos da prática pedagógica, tais como as avaliações, os planos de aula, a relação professor-aluno e todas as demais atividades que compõem o cotidiano escolar – são todos voltados para um tipo ideal de aluno. Fica nítido que os professores, em nome da justiça social, aplicam a mesma prova para todos os alunos e depois comparam seus desempenhos, sem levar em conta o desenvolvimento e a história de vida de cada um. Com isso, cometem um equívoco inadmissível sob a ótica da pesquisa científica, isto é, comparam fenômenos desiguais sem o devido controle das variáveis envolvidas.
 
  • Assim, a seriação escolar traz consigo inúmeras con­tradições internas latentes. Dentre elas, destaca-se o mes­mo discurso que reconhece as diferenças existentes entre os alunos e os coloca em classes comuns como se fossem iguais. A ideia de classe como local dos iguais é, também, a ideia da classe como local dos diferentes. Na esteira des­se paradoxo, está a forma de se organizar e difundir os conteúdos, que, com base a ideia de série maior e menor, são escolhidos e hierarquizados sob a ótica do simples e do complexo, do fácil para o difícil. Não levam em conta que as relações simples-complexo, fácil-difícil, devem ser analisadas do ponto de vista histórico da realidade dos alunos, e não apenas da perspectiva intrínseca do conhe­cimento.
 
  • A ideia de que existem conhecimentos certos para ida­des certas é extremamente danosa para o desenvolvimen­to e desempenho dos alunos. A prática tem demonstrado que tal adequação somente existe porque abstratamente são identificados alunos e conhecimentos. Não conseguem os seguidores desse ideário compreender ou aceitar o fato de muitas crianças atualmente dominarem conhecimentos que julgamos complexos, difíceis ou inadequados para suas ida­des. As crianças vivem nos surpreendendo com suas atitudes e articulações de pensamentos. Quantas pessoas aprendem com os filhos mais novos a lidar com microcomputadores, jogos eletrônicos e outros equipamentos modernos?
 
  • Na visão dos defensores da relação mecânica entre ma­turação e aprendizagem, isso seria totalmente impossível. Perguntariam: como uma criança pode aprender e dominar conhecimentos complexos com maior desenvoltura e rapi­dez que um adulto experiente e maduro? A prática social tem demonstrado que atrelar-se tipo de conhecimento à idade, ignorando-se a história e o conheci­mento acumulado pelo indivíduo, é perigoso e pode levar a subestimar-se ou superestimar-se a capacidade dos alunos.
 
  • Quando se subestima, além de não se oportunizar o estímulo ao desenvolvimento e crescimento da criança, geralmente se utiliza o discurso de que a criança não está “pronta” para aprender aquele tipo de conhecimento. Por exemplo, afirma-se que quando se colocam juntas crianças com idades diferenciadas, as mais novas ouvirão ou apren­derão “coisas” para as quais ainda não estão preparadas.
 
  • Geralmente esse discurso é utilizado quando se trata de conteúdos que envolvem questões de fundo axiológi­co, como: sexualidade, amor, aborto, morte, dentre outros. Conteúdos como Matemática, Ciência, História não são vis­tos dessa forma, como negativos ou perigosos para a idade. Pelo contrário, quando a criança apresenta precocemente algum tipo de aprendizado desses conteúdos, os pais ficam extremamente satisfeitos e os dons do filho passam a ser ob­jeto de demonstração nas rodas de amigos.
 
  • Quando se subestima a capacidade do aluno, se afeta, na maioria das vezes, a sua autoestima, principalmente ao se utilizarem discursos como: “nessa idade ainda não domina esse conhecimento”. Com isso, desconsideram-se, ou não se levam em conta, os condicionantes históricos do indivíduo, fazendo com que ele assuma toda a culpa e responsabilidade pelo seu fracasso. Outro exemplo, uma menina de 14 anos que, por questões históricas, não teve acesso à escolarização, não atendendo, portanto, às exigências da escola em termos de domínio da linguagem escrita, frequentando, por con­seguinte, a mesma série de crianças de sete anos, que tam­bém não dominam a linguagem escrita. Com isso é obri­gada, além de ouvir estórias e contos, a vivenciar diálogos completamente inadequados à sua história e experiência de vida. Nessa realidade, ela é obrigada a ignorar todo seu conhecimento acumulado, a sua linguagem do mundo. Ela pode não saber escrever, mas, possui um vocabulário maior, mais rico e cheio de significado, do que o da criança de sete anos. Esse fato, por si só, já é um diferenciador importan­te que a escola não leva em consideração. Com tal atitude, a escola seriada simplesmente reduz a condição concreta “ser”, de 14 para de sete anos, fazendo com que a pessoa, ou assuma a nova idade, ou se rebele contra ela3. Geralmen­te ela opta pela segunda possibilidade e é logo rotulada de indisciplinada, ou até mesmo de “retardada”, não pelo co­nhecimento que possui, mas pelo conhecimento escolar que deveria possuir naquela idade e série.
 
  • A pessoa do exemplo pode até não dominar o alfabeto ou saber ler e escrever, porém dificilmente aceitará ser trata­da como uma criança de sete anos. O que ela não domina é um tipo determinado de conhecimento. Em outras palavras, não domina o conhecimento eleito como válido e importan­te pela escola. Porém, pela própria vivência e experiência, domina outros tipos de conhecimentos que na maioria das vezes, são totalmente ignorados pela escola seriada. Talvez caiba aqui o ensinamento contido no que disse Paulo Freire, que a leitura do mundo precede a leitura da escrita. Esses e outros exemplos demonstram claramente al­guns dos problemas resultantes da concepção da educação que tenta igualar os indivíduos tomando por base as ideias de série, de gradual idade, de idade mental e cronológica e do desempenho escolar do aluno, fazendo com que a culpa pelo fracasso recaia sobre seu ombros, perpetuando, assim, o ciclo da reprodução do fracasso escolar4.
 
  • Nessa linha de raciocínio, podemos afirmar que a rela­ção maturação/ conhecimento não é mecânica e exige que se leve em conta a mediação dos componentes históricos e culturais presentes nos indivíduos. Assim como não é possí­vel atrelar-se diretamente o nível de conhecimento ao nível de maturação, não se pode, também, considerar a matura­ção desprovida do conhecimento. São partes importantes do processo de desenvolvimento e desempenho do indivíduo e seu entendimento passa necessariamente pela visão de con­junto e da relação dinâmica entre si. O conhecimento esti­mula a maturação e esta, por sua vez, faz com que haja maior apreensão de conhecimento, e assim o movimento continua.
 
  • Sabemos, contudo que se trata de uma discussão com­plexa e de difícil consenso, pois, no fundo, o que está em questão é a concepção de causalidade presente nesses dis­cursos. Os defensores da prontidão nos moldes atuais partem do pressuposto de que todo efeito tem uma causa e vice­-versa. Com isso, admitem somente a possibilidade de um fenômeno (A) levar a um fenômeno (B) ou (C). Não admi­tem, contudo a possibilidade de (A) levar a (B), e (B) levar a (A). No primeiro raciocínio, sempre existirá um início e um fim. No segundo, entretanto, o início pode ser o fim e o fim pode ser o início, possibilitando, assim, o movimento do processo. Em outras palavras, na segunda linha de raciocínio a maturação e o estímulo não se separam no tempo, pelo con­trário, formam um todo de uma mesma relação. Já na primeira linha de raciocínio, a utilização do estí­mulo necessita aguardar que a maturação ocorra primeiro, pois, caso isto não aconteça, o estímulo será totalmente inú­til. São os famosos casos de crianças com idade inferior a seis anos que, mesmo dominando o conhecimento exigido na primeira série, por exemplo, são impossibilitadas de se matricular. Tudo em nome da maturação e prontidão.
 
  • Como podemos observar, são duas formas de se ver o princípio da causalidade e, dependendo da concepção ado­tada, o processo ensino-aprendizagem toma rumos comple­tamente diferentes. Acreditamos que os argumentos apresentados ante­riormente sejam suficientes para justificar os limites da es­cola seriada, que seguramente vem dando mostras claras de exaustão. Como não é nosso propósito revisitar a história dos fracassos e mazelas educacionais da seriação escolar, a par­tir deste ponto daremos destaque às propostas existentes e conhecidas que tentaram, ou ainda estão tentando de al­guma forma, superar o atual quadro de problemas ligados ao acesso e à permanência dos alunos nos bancos escolares seriados. Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (Montpellier, 19 de janeiro de 1798 —Paris, 5 de setembro de 1857) foi um filósofo francês, fundador da Sociologia e do Positivismo.)
 
  • Os parcelados eram exames que os alunos realizavam anualmente, sem a necessidade de frequentar regularmente os bancos escolares. Dos 88% das crianças brasileiras matriculadas e que pelo potencial econômico brasileiro deveriam chegar pelo menos até a 5ª série do 1ºgrau, apenas 395 chegam até este estágio. Só 5% conseguem concluir o 1º grau, sem repetir um ano. Turmas aceleradas: retrato de uma nova prática (ESCOLA..., 1994, p. 5).O projeto Escola Plural apresenta como solução para o problema dos alunos fora de faixa as chamadas “Turmas aceleradas” que consistem em “[...] projetos específicos a ser desenvolvido com os alunos do 2º ciclo que, em termos de habilidades e conhecimentos disciplinares, estão distanciados de seus pares de idade, necessitando assim, de uma intervenção específica” (ESCOLA..., 1994, p. 7).
 
  • TENTATIVAS DE SUPERAÇÃO - CBA
 
  • Uma das primeiras tentativas de se superar o modelo se­riado e resolver problemas educacionais candentes na época foi o Ciclo Básico de Alfabetização – CBA – instituído por força da Resolução no 5.231, do CEE/MG (MINAS GERAIS, 1984). É considerado uma tentativa governamental de solu­cionar o problema da evasão e repetência escolares no Estado de Minas Gerais. O texto da Resolução coloca como objetivos do Ciclo, dentre outros, a “necessidade de atenuar os índices de evasão e repetência nas séries iniciais do 1º grau”.
  • Essa tentativa, em prática há mais de dez anos, tem re­cebido críticas negativas e positivas por parte da comunida­de educacional envolvida, tendo como base a metodologia aplicada nas escolas e os resultados das avaliações realizadas ao longo desses anos. Apesar disso, houve uma dilatação no período do ci­clo, de dois para três anos, na tentativa de se flexibilizar ainda mais o processo existente. Segundo os signatários da proposta, ela visa a [...] “permitir maior flexibilidade na organização curricular, tendo em vista o desenvolvimento gradual e progressivo do processo de alfabetização e as ca­racterísticas sócio-culturais dos alunos” (MINAS GERAIS, 1984, p. 44-47).
  • A prática tem demonstrado que, apesar de a proposta em apreço pretender flexibilizar a estrutura escolar e peda­gógica da escola, não conseguiu modificar sua base estru­tural, mantendo a seriação e os desdobramentos dela de­correntes. O afrouxamento das séries em ciclos mais longos não trouxe consigo a discussão fundamental sobre os con­teúdos e suas formas de transmissão aos alunos. Com isso, os professores continuaram a tratar o CBA como séries, na medida em que tanto os conteúdos quanto a distribuição dos alunos continuaram as mesmas existentes na antiga se­riação. A título de exemplificação, destacamos que em algu­mas escolas o CBA é hierarquizado em CBA e CBA I.
 
  • Outra tentativa que merece destaque é a chamada Escola Plural, proposta pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e aprovada pelo CEE/MG, que pretende : “[...] reverter o qua­dro de exclusão através de um esforço coletivo para construir uma alternativa de trabalho capaz de estabelecer novos rumos para a escola pública municipal [...]” (MINAS GERAIS, 1995). Os documentos consultados que tratam do projeto Es­cola Plural (1994) deixam claras as concepções de homem, mundo e sociedade, bem como de currículo e organização escolar. No documento “Construindo uma referência Curricu­lar para a Escola Plural”, os signatários do projeto apresen­tam três relatos de experiências, em que a base da constru­ção curricular é a prática dialógica e a realidade do aluno. As experiências relatadas são ricas em detalhes e apontam os principais problemas vividos pelos professores envolvi­dos na pesquisa.  Merece destaque, na concepção e operacionalização do currículo, a contradição presente nos discursos dos pro­fessores entrevistados. Eles, simultaneamente, conceituam currículo como sendo a sistematização dos conteúdos básicos e universais que devem ser trabalhados em deter­minada etapa e, ao mesmo tempo, indicam como fatores impeditivos desta operacionalização, as di­ferenças de realidade e individuais de cada aluno (ESCOLA..., 1994). Percebemos, ainda, na análise dos documentos, que os autores do projeto fazem uma crítica consistente e bem ela­borada sobre o entendimento de currículo vigente. Sinteti­camente, centram suas críticas na fragmentação e falta de integração das disciplinas; na transmissão de conhecimentos pautados no mercado editorial, via livro didático; na descone­xão dos conteúdos com os problemas imediatos do contexto sócio- cultural, estando voltados apenas para produtos como resultados de memorização ou satisfação imediata do aluno. Diante dessas reflexões, os autores do projeto apontam algumas linhas de ações que merecem ser destacadas para entendimento do que venha a ser a Escola Plural.
 
  • Primeiro defendem a ideia de que temos que nos orientar pelos eixos que norteiam a proposta [...], pensar em objetivos a partir dos quais haja condições e possibilidades para que cada aluno possa construir e reconstruir sua iden­tidade sócio-cultural sem rupturas e descontinui­dades, sendo sujeito interativo com direito a se expressar e colocar suas experiências e conheci­mentos de mundo. Daí a responsabilidade do pro­fessor compreendê-lo, partindo de onde ele está para o desenvolvimento de outras potencialidades (ESCOLA..., 1994, p. 37).
 
  • Segundo, buscam o resgatar o papel e a responsabilida­de do professor uma vez que ele [...] vai trabalhar a partir das experiências prévias da criança, procurando, através de atividades re­flexivas, fazer com que ela vá se superando a cada momento [...] a criança passa a ser vista como uma pessoa que vive na sua comunidade, parti­cipa de uma determinada cultura e faz parte de um determinado processo histórico (ESCOLA..., 1994, p. 37).
 
  • Em terceiro lugar, apontam a necessidade de [...] um redimensionamento do trabalho conjunto da escola [...] a concretização da nova qualidade de ensino que buscamos passa pelo comprome­timento dos segmentos da população atendidos pela escola;, na discussão, execução, no registro e na avaliação do processo, tendo como pano de fundo a ação -reflexão- ação [...] o trabalho cole­tivo leva as pessoas a se encontrarem mais; apren­derem a se defrontar com diferentes perspectivas [...] (ESCOLA..., 1994, p. 37).
 
  • Em quarto lugar, advogam a superação das questões que envolvem a grade curricular e os programas de conteúdos de­finidos pela indústria do livro didático, pois, segundo os auto­res da proposta Escola Plural, esses compêndios colocam o co­nhecimento como um conjunto de verdades inquestionáveis, prontas e acabadas. Apontam como saída os conteúdos orien­tados pelo princípio da provisoriedade do conhecimento, [...] partindo do pressuposto de que estamos cons­truindo um conhecimento que não vai ter nunca um estado acabado, que vai ser sempre um pro­cesso marcado pelo contexto histórico e social [...] (ESCOLA..., 1994, p. 37).
 
  • Em quinto lugar, estabelecem como elo dos demais as­pectos a forma metodológica e a ação pedagógica que vai estar na instituição mediando a apropriação, a criação e/ou reconstrução de novos conhecimentos. O projeto Escola Plural prevê a organização do ensi­no fundamental em três ciclos: primeiro básico, forma­do por alunos com 6-7,7-8,8-9 anos; segundo básico, por alunos com 9-10,10-11,11-12; e terceiro ciclo, alunos com 12-13,13-14,14-15. Essa estrutura está baseada nas ideias de infância, pré -adolescência e adolescência. Segundo ainda os autores dessa proposta, ela visa orientar o currículo de modo a incorpo­rar uma concepção mais totalizante da educação básica; incentivar a interdisciplinaridade; inserir temas transversais aos saberes do programa, te­máticas e saberes postos pelos avanços sociais e culturais [...] (ESCOLA..., 1994, p. 37). Como podemos observar, essa proposta agrupou os alunos pelos preceitos psicológicos de infância, pré-ado­lescência e adolescência. Tal forma de ordenação leva em conta muito mais a idade cronológica e mental, do que o desenvolvimento e desempenho dos alunos. Entendemos que a escolha dos critérios para agrupar os alunos não é tarefa fácil, tendo em vista os conhecimen­tos produzidos a esse respeito até o presente momento.
   
  • PERSPECTIVAS FUTURAS
 
  • Através dos estudos realizados iremos trabalhar com a escola não seriada e com a escola seriada, buscando mostrar as relações sociais e os aspectos biológicos envolvidos nes­sas perspectivas futuras.
 
  • ESCOLA NÃO SERIADA
  • A Escola não seriada parte da concepção de que todos os homens são diferentes e que é a diferença que possibilita a compreensão de seus limites. A escola não seriada que de­fendemos é uma proposta educacional baseada na concep­ção de um ser humano ativo, cujo conhecimento se constrói nas relações históricas e sociais. Nessas relações, a influência social e os aspectos bioló­gicos do indivíduo formam um todo de uma mesma relação, descartando com isto, as ideias dominantes da predominân­cia do biológico sobre o social e da relação polarizada entre esses fenômenos, na qual existe sempre a supremacia ora de um, ora de outro (PIAGET, 1987, 1994; SOARES, 1989). Se­gundo a perspectiva biológica de Piaget (1994), o princípio de adaptação é inerente a todo ser vivo. [...] adaptação é importante para todos os se­res vivos, porque quando um indivíduo cessa de adaptar ao seu meio, simplesmente morre. De acordo ainda com este autor, a inteligência é uma adaptação que ocorre seguindo um determinado esquema e de acordo com categorias implicadas umas nas outras, nada acontecendo isoladamente. Estas retratam aspectos da realidade, ou em ou­tras palavras [...] é adaptando-se às coisas que o pensamento se organiza e é organizando-se que estrutura as coisas.
 
  • A concepção desse importante autor, apesar de consi­derar a relação entre os aspectos biológico e do meio social como sendo de suma importância para a aquisição do co­nhecimento, deixa clara a dependência do segundo em rela­ção ao primeiro, não enfatizando a reciprocidade dinâmica que deve existir entre estes aspectos. O princípio da causalidade em bases relacionais dinâ­micas sempre em movimento é à base da relação entre sujei­to e objeto. Com isso, as histórias do indivíduo, bem como suas características biológicas, passam a ser vistas conjun­tamente e de forma tal que uma influencia a outra e a outra influência a “uma”; uma é causa da outra e a outra, a causa da “uma”.
 
  • Como proposta curricular, a escola não seriada advoga o redimensionamento do tempo e do espaço escolares, bem como a flexibilização dos conteúdos rumo a uma aborda­gem integradora que rompa com a compartimentalização das disciplinas e a fragmentação do conhecimento. Os conteúdos, da forma como estão estruturados na es­cola atual, na maioria das vezes são selecionados, organiza­dos e valorizados levando-se em conta certa cultura5. Com isso, ela é obrigada a criar uma espécie de cultura escolar, na qual privilegia apenas o que vai transmitir e menospreza os conteúdos e valores culturais que diferem ou não vão ao en­contro dos interesses sociais e políticos dominantes em seu interior. Essa “cultura escolar” que parece ter “vida própria” tem contribuído de forma decisiva para o descompasso en­tre as histórias culturais do aluno e da escola, impedindo que o princípio das unidade na diversidade se concretize.
 
  • Na escola Não Seriada, cultura é movimento e entendi­da como sendo [...] um sistema concreto que torna humanamen­te possível a natureza ser apreendida como valor e transformada através de processos sociais; em produtos da cultura que distribuem em esferas diversas as diferentes instâncias simbólicas de re­alização da vida social : a economia, o sistema de parentesco, a organização do poder, a arte e ciên­cia; a educação (BRANDÃO, 1985, p.105). A mudança orgânica na escola atual é a grande meta da Escola Não Seriada (ENS). As primeiras modificações di­zem respeito ao entendimento de poder, simetria e assime­tria do conhecimento. Na ENS, o poder não terá nem sala nem pessoa exclusiva para se concretizar. Será incorporado e exercido por todos que da escola participam. O poder é de suma importância para o desenvolvimento das atividades. Todos terão poder, porém ninguém o exercerá, a não ser visando ao bem comum.
 
  • O poder e o interesse sempre caminharam juntos mas, na ENS, tanto o poder como seus interesses devem visar o bem de todos. O sucesso, interesse mais comum dos que perseguem o poder, não deverá ser visto como algo indivi­dual, mas coletivo. O princípio da unidade na diversidade pressupõe que os sucessos individuais existem, não podem ser negados e precisam ser enaltecidos, porém nunca absolutizados ou vistos apenas como conquistas pessoais, e sim, como fruto do trabalho coletivo. As descobertas de Albert Einstein so­mente foram possíveis porque, Thales, Galileu, Cópernico, dentre outros, o precederam. O respeito ao estatuto histórico de cada indivíduo não permite que a ideia de igualdade continue a existir. Os co­nhecimentos, como as experiências e histórias, são diferen­tes. E é justamente na diferença que os sujeitos tomam cons­ciência de seus limites e capacidades. A concepção de que não existe assimetria entre o co­nhecimento dos professores e o dos alunos deverá ser supe­rada. A assimetria existe e deverá ser cultivada. O danoso não é a assimetria em si, mas o uso que dela tem sido feito, isto é, as diferenças serem usadas como forma de poder e dominação, e não como meio de ajuda, visando ao cresci­mento coletivo e o bem comum.
 
  • Na escola seriada, a assimetria, como forma de domi­nação, tem papel importante no processo de exclusão. Ela se manifesta na forma de organização (séries, ciclos), entre professores e alunos, reflexo da pirâmide social e de poder. Dentro das escolas regulares, existe uma hierarquia de im­portância e valor dos conteúdos escolares, fruto não só das concepções epistemológicas dominantes, mas também do horizonte da escola que é o vestibular. Essa forma de organi­zação situa no topo da pirâmide as disciplinas consideradas importantes e, dentro de cada uma, a hierarquia reproduzi­da na seleção e disposição dos conteúdos.
 
  • Os professores, alunos e pais julgam que a Matemáti­ca, a Física e a Química, por exemplo, são mais importantes que Educação Física, História ou Artes. Esquecem-se que o aprendizado das crianças nem sempre segue uma progres­são lógica, de um conteúdo conhecido associado ao desco­nhecido. A simples observação do comportamento de uma criança bem pequena diante das estórias infantis mostra­-nos que, mesmo não conhecendo uma bruxa malvada, tem medo (EGAN, 2004). Essa forma de assimetria entre os conhecimentos deve ser superada e a importância individual de cada conteúdo ser avaliada não apenas pela ótica do vestibular, mas pela sua contribuição á compreensão e solução dos problemas sociais elencados pela escola.
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  • FORMA DE GESTÃO DA ESCOLA NÃO SERIADA
 
  • Um dos graves problemas da escola seriada é o isola­mento, tanto dos professores quanto dos gestores. Em que pese a prática da eleição dos dirigentes, como os professores, continuam sendo ilhas de poder e saber. O diretor, quando fala da escola, utiliza termos como minha escola, meus alu­nos, meus professores. Esse discurso tem como fundamento uma prática educativa em que o professor tem sua sala, seus alunos, seu plano de ensino, seus objetivos e sua concep­ção de educação. No caso da Educação Infantil, é mais grave ainda, porque os professores assumem um papel multidisci­plinar, mesmo tendo consciência de suas limitações.Na escola não seriada, todos os professores são profes­sores de todos os alunos e todos os alunos são alunos de todos os professores. A gestão escolar é democrática e exer­cida por um professor eleito que, em sua função executiva, terá ajuda de todos. Ele não será visto como o dono da esco­la, mas apenas como seu representante legal.
 
  • A artificialidade das subdivisões em série, ciclos ou anos de escolaridade é substituída pelo trabalho em grupos temáticos heterogêneos, flexíveis, dotados de permanente mobilidade. São grupos abertos, constituídos por um nú­mero variável de alunos e apoiados por mais de um profes­sor. A sua composição mantém-se apenas o tempo necessá­rio para a concretização de objetivos pontuais previamente elencados. Os critérios de para sua organização não se pau­tam apenas pelo rendimento, domínio de competências, ex­pectativas, ou objetivos instrumentais.
 
  • A ENS deve articular suas ações de ensino por meio de grupos temáticos gerais (GTG) e específicos (GTE). Cada GTG é formado por, no máximo, 25 alunos e, GTE por dez. No GTG, serão desenvolvidas, por dois ou mais profes­sores, as atividades de ensinos-aprendizagem relativas aos tópicos de conteúdos escolhidos. O espaço escolar será divi­dido de forma a garantir a participação de todos os alunos e professores. O acesso ao GTG é livre, podendo o aluno participar de, no máximo, três GTG por bimestre. O tempo de trabalho em cada GTG será de duas horas diárias, duas vezes por semana. O aluno inscrito no GTG de seu interesse deverá cumprir todas as atividades planejadas entre ele e o professor para o tópico de conteúdo escolhido.
 
  • Nos GTE serão trabalhadas, por um professor, as ques­tões não aprendidas pelos alunos durante os encontros do GTG. Para cada GTG existirá um GTE para se trabalharem especificamente as dúvidas e dificuldades dos alunos. A pro­cura pelo GTE poderá dar-se por orientação do professor ou por livre iniciativa do aluno. Cada GTE terá duração de duas horas, duas vezes por semana. O trabalho do professor no GTE deverá enfocar diretamente as questões tratadas no GTG, que os alunos ainda não dominam. É importante, tan­to para o professor quanto para o aluno, que as dificuldades e as tentativas de solução sejam do conhecimento de ambos, antes de cada sessão de GTE. Dentro de cada grupo, a gestão dos tempos e espaços permite momentos de trabalho em pequenos grupos, mo­mentos de participação coletiva, momentos de “ensino mú­tuo”, momentos de trabalho individual.
 
  • Os alunos possuem autonomia quase total na gerên­cia do tempo e do espaço educativo. Escolhem o que e com quem querem estudar. No mesmo instante, um aluno pode dirigir-se à biblioteca para recolher informação, enquanto outro pode estar na sala de informática, redigindo um texto ou revendo textos com outros colegas. Essas são algumas as principais características da es­cola não seriada. Caso queira mais detalhes, consulte a obra mencionada (CARMO, 2006).
 
  • Retomando a discussão sobre escola seriada e escola não seriada, uma diferença fundamental entre elas reside no fato de a primeira estar ciente da desigualdade social e atuar com todas as suas forças para dissimular ou encobertar essa diferença, sendo o discurso igualitário uma de suas pode­rosas armas. A segunda, por sua vez, parte da desigualdade e coloca a diferença como centro do crescimento dos alu­nos. Para ela, a diferença não é um problema, como pensa a primeira escola, o problema está em utilizar essa diferença como mecanismo de discriminação e segregação social.A escola não seriada não silencia diante das desigual­dades sociais, pelo contrário, ela as explicita, discute-as e tenta superá-las, na medida do possível.
 
  • A forma de gestão da escola não seriada aqui apresentada tomou por base as experiências dos Projetos Escola Plural, implantado no município de Belo Horizonte em 1990, e da escola da Ponte implantado em Vila das Aves, Conselho de Santo Tirso, em Portugal, em 1976. Portanto, procuramos aproveitar ao máximo estas experiências, fazendo logicamente proposições superadores das inadequações encontradas.
     
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